quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Carta que escrevi ao Ministério da Saúde


Por minha vontade, eu vinha aqui, saudava os leitores e mostrava a carta que tinha escrito para o Ministério da Saúde sem mais demoras. Só que o Gary avisou-me para a vossa exigência, de quererem saber porque é que uma pessoa ficou tanto tempo sem escrever aqui e exigem uma explicação. O Gary também me disse que só não exigiram isso ao Teófilo e não exigem nunca ao Jorge Abel que ele tenha rigor na pontuação. Eu, como picheleiro honesto que sou, também sou honesto quanto à pontuação, sendo isso algo que me caracteriza enquanto ser humano. Por isso, antes de mostrar a carta que enviei ao Ministério da Saúde, devo-vos a explicação que nos últimos meses fui contratado para um trabalho de fundo num centro de saúde local, o que me levou à escrita desta mesma carta que agora, depois da futilidade da vossa exigência, vos apresento:



«Bom dia,


Saúdo-vos com os bons dias mesmo sabendo que ninguém vai ler esta carta de manhã, porque durante o tempo em que fui encarregado das obras de picheleria de um Centro de Saúde, que por respeito aos seus profissionais e ao meu código deontológico de picheleiro que respeita a confidencialidade, manterei no anonimato, me obrigavam a lá estar às 08:30. Digo-vos também que não sabia a quem escrever para denunciar esta situação, mas como não há uma Ordem dos Picheleiros e como a Ordem dos Médicos agora só quer saber de greves e protestos, decidi escrever para vocês, que ao fim e ao cabo mandam na Ordem dos Médicos apesar de vocês não o saberem e eles não o admitirem. 


Ainda que não sejam os médicos o motivo da minha queixa, eles também não são parte isenta de responsabilidade pelo Inferno (e sim, escrevi Inferno com letra maiúscula ainda que seja um lugar metafórico e que, se existir e um dia for lá parar, não me fará confusão depois do que passei naquele Centro de Saúde, que também escrevo com letras maiúsculas tal como escrevi Inferno) que eu passei nos cerca de dois meses em que lá efectuei o meu honesto, respeitável e competente trabalho. Como tal, nos próximos parágrafos vou mostrar os principais motivos pelos quais eu e o Márcio, um trolha da minha confiança que tive que recrutar para esta empreitada, porque ao contrário de outros picheleiros não me considero um especialista em tudo, terminamos o nosso trabalho sem ter sentido o prazer de uma obra acabada, mas antes o alívio de uma tortura que havia chegado ao fim.


Para começar, é natural o olhar de desconfiança que muitas pessoas nos lançam mal sabiam o que éramos. Mas o pior é que nunca ninguém dizia que éramos «o trolha e o picheleiro» mas sim «os trolhas» ou «os picheleiros». Uma vez tive uma secretária a perguntar-me porque é que o Centro de Saúde não a aumentava há 5 anos mas tinha dinheiro para contratar dois picheleiros. Quando lhe expliquei que não éramos dois picheleiros mas um picheleiro e um trolha, virou costas e foi tirar fotocópias só porque um médico mandou. Mas sabem porque é que é natural aquele olhar que nos lançam? Por causa dos primeiros picheleiros! Quem foi o picheleiro responsável pelas obras naquele Centro de Saúde? Quem é que vocês contrataram? Um intrujão! Tudo mal feito, tudo acabado às três pancadas, cheio de silicone por todo o lado só para se dar a ilusão que está bem preso e seguro e, por isso, bem feito. O silicone na picheleria é como o silicone nos seios das mulheres, o efeito é visualmente atractivo mas no fundo está tudo mal feito. Depois, eu é que tenho que dar a cara por esses picheleiros sem brio e sem honra profissional. Estou casado com a minha mulher há quase 10 anos e continuo a sentir a mesma atracção sexual por ela que tinha no primeiro dia e ela nunca pôs silicone. Porque raio é que os outros picheleiros vêem no excesso de silicone a solução para tudo? 


Outra coisa que nunca compreendi foi a situação das casas de banho. Nunca na minha vida me aconteceu tal coisa. Logo no primeiro dia, a minha mulher fez-me almôndegas para o almoço. Na confecção das almôndegas, ela usa um molho espesso e picante, como eu gosto, mas que me provoca movimentos intestinais agressivos, que me levam a ter de andar sempre com uma revista ou um jornal para ir à casa de banho com tempo. Mas eis que peço a uma funcionária para me indicar onde era a casa de banho e ela diz-me que nós, eu e o Márcio, usávamos a casa de banho dos deficientes para não sujar as normais. A início senti-me insultado por nos estarem a atribuir tal casa de banho, mas depois deixei de ser egoísta, que isso não é digno de um picheleiro honesto, e pensei que o insulto era para os deficientes. Afinal, a casa de banho deles pode estar suja que não há problema? E pode estar ocupada? É este o respeito que há pelos deficientes num centro de saúde? E no caso do insulto ser para nós, é este o respeito que há pelos picheleiros e pelos trolhas num centro de saúde? Quando vamos às casas das pessoas usamos a casa de banho normal, não nos metem um balde e um pote para fazermos tudo ali. 


Quanto a esta situação, disse-me uma empregada de limpeza que nós sujávamos as casas de banho todas e que por isso é que nos pediram tal coisa. E nós é que temos culpa disso? Andávamos o dia todo a partir parede, tijoleira e a mexer em cal e queriam que estivéssemos limpos? Se queriam aquilo limpo que limpassem! Têm empregadas de limpeza para quê? Para esfregarem o chão uma vez e depois ficarem a falar durante 2 horas e a assediar o Márcio só porque ele tem 35 anos mas parece que tem 25 e é solteiro? Elas que nos deixassem trabalhar e depois fossem lá limpar, que esse é o trabalho delas, não é o de adivinhar se o Márcio era 91, 92 ou 96. E mais! Eu vi médicos com manchas de gordura e de molho nas batas e ninguém os olhava de lado ou ninguém os julgava por isso. Mas a nós, que tínhamos as sapatilhas sujas do nosso trabalho e não por termos ido almoçar fora, já toda a gente nos olhava de lado. 


Mas o pior, a meu ver, era a postura perante a comida. Se fazíamos uma pausa para comer uma maçã era como se tivéssemos cometido um crime. Então se fosse para fumar um cigarro, neste caso o Márcio, era o fim do Mundo, quase que só faltava dizer que tínhamos ido ali para brincar e não queríamos trabalhar. Como se eu não visse lá os médicos a irem fumar quase de hora em hora. E uma vez quando estive no hospital, os que mais fumavam eram os neurocirurgiões. E agora digam que os neurocirurgiões não gostam de trabalhar. Só que o pior era aquelas máquinas que agora há em todo o lado que têm bebidas e comidas. Ninguém pagava nisso. Os médicos e as secretárias iam falar com o segurança, ele anotava, abria a caixa e dava-lhes o que quisessem mas nós pagávamos tudo! Nem um cafézinho nos ofereceram. E eu via médicos e enfermeiros a irem tomar café 4 e 5 vezes ao dia! Se isto não é discriminação profissional e a luta de classes então não sei o que é. Poderia enviar esta carta para o Sindicato dos Picheleiros mas não existe. Pelo menos eu acho que não existe, se existir peço-lhes desculpa por em 20 anos de profissão nunca ter pago uma quota que fosse. 


Para terminar, denuncio só uma situação que, infelizmente, é algo com que recorrentemente nos deparamos: a incompreensão das pessoas face ao nosso trabalho. Toda a gente queria aquilo pronto mas quando pedíamos para desligar a água ou a luz ou quando fazíamos algum barulho parecia que estávamos a pedir dinheiro ou um rim às pessoas. Faziam cada cara que só apetecia pegar nas coisas e ir embora, algo que só não fiz porque nunca deixei um trabalho por acabar. E não é acabar à pressa a encher tudo de silicone como fez o anterior picheleiro daquele centro de saúde. Faziam cara de mal dispostos e depois lá iam desligar o que tínhamos pedido. A minha conclusão é que no centro de saúde é tudo gente mal disposta, por isso é que ninguém quer ir lá. Estou mortinho por voltar aos serviços ao domicílio, que aí ao menos as pessoas sabem que precisam mesmo de nós e até nos oferecem cafés e água. Além disso, nos serviços ao domicílio as pessoas tratam-nos ao mesmo nível, no centro de saúde não. Toda a gente nos via como inferiores. Até um moço todo espinhoso, devia ter para aí 20 anos, da Informática, nos veio perguntar se íamos demorar muito e se não podíamos fazer menos barulho porque ele se queria concentrar. Queria ver se ele arranjava a canalização toda do centro de saúde só a carregar no «Enter» e no «Shift Delete». Mas se calhar, esse, também não pagava lá nas máquinas de venda de comida e bebida, mas nós sim.


Posto isto, termino a minha carta. Não sei se algum dia volto a um Centro de Saúde para trabalhar lá. Posso eventualmente voltar caso descubra que não tenho o boletim de vacinas em dia ou caso a minha estimada mulher queira alterar o nosso plano alimentar e nos leve a uma consulta de Nutrição. Por acaso, a Nutricionista era a pessoa mais simpática do Centro de Saúde, que uma vez até nos disse que os picheleiros e os nutricionistas faziam um trabalho semelhante, que mexiam nos interiores, modificavam o que estava mal e proporcionavam um melhor funcionamento às pessoas. Eu adorei a comparação, o Márcio é que não, que ele não é picheleiro, é trolha. E a minha mulher disse-me que esperava que eu nunca mais visse essa nutricionista. 


Do vosso ex-colaborador, que passou dois dos piores meses da sua vida em termos profissionais, ainda que no final dos trabalhos tenha visitado o Centro de Saúde só para ir ver os lavatórios e para ir abrir a água em todas as casas de banho para estar orgulhoso do meu trabalho (e do do Márcio, claro, que eu não fiz tudo sozinho, só na parte da picheleria),


Lucindo Sampaio de nascença, Lucindo Sampaio Bonifácio desde a radiante data em que entrou na minha vida a pessoa mais espectacular, mais sexualmente compatível comigo e mais ciumenta face a nutricionistas que fazem comentários profundos e brilhantes sobre a minha actividade profissional. Ainda que a minha mulher também goste de elogiar a minha profissão, atenção. Não a trocava por uma nutricionista, que certamente não ia fazer molho para as almôndegas, iam mesmo assim, sem molho, todas desconsoladas.»


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