O local onde tudo o que é produzido é fruto de delírios alucinatórios. De quem escreve e de quem lê.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
Hoje fui trabalhar doente e o meu patrão mandou-me vir mais cedo para casa
O meu patrão é um tipo porreiro. Não passa à frente de ninguém ao almoço só porque é o patrão, uma vez emprestei-lhe uma caneta azul para ele assinar um documento e ele ofereceu-me uma nova só porque tinha roído a tampa da minha e nunca me obrigou a ficar a vigiar a porta do escritório dele enquanto encavava lá moças, como me fazia o meu patrão do talho. Só não gosto quando ele me obriga a ir de férias e me paga para não trabalhar. Hoje, à hora de almoço, ficou atrás de mim e do Júlio César e à frente do Sebastião na fila. Eu bem disse ao Sebastião para não ir lavar as mãos antes de ir buscar o almoço, mas ele disse que era rápido e foi. Quando voltou já estava lá o patrão atrás de nós. Para falar para o Sebastião tinha que me desviar do patrão. Ele ouviu-me a falar e perguntou-me se eu estava bem. Disse-lhe que estava com um bocado de fome, mas que conseguia esperar. Ele perguntou-me se eu estava doente e eu disse-lhe que sim.
Entretanto parei de falar porque foi a minha vez de me servir. A Xana da cantina hoje serviu-me sem falar muito comigo. Só me perguntou o que é que eu queria. O Júlio César disse-me que era por o patrão estar atrás de nós mas o Sebastião disse-me que era porque ela andava a sair com o moço da Costa Rica que agora trabalha cá na fábrica. Pelo sim, pelo não, quando acabei de almoçar fui ter com a Xana. Perguntei-lhe se estava tudo bem e ela disse-me que estava toda partida, que ainda lhe custava estar sentada mas que estava melhor que nunca. Achei a descrição um bocado contraditória, mas o Venâncio disse-me que no Livro dos Direitos das moças está lá o direito a serem contraditórias sem serem obrigadas a explicarem o porquê. Perguntei à Xana se ela tem visto o moço da Costa Rica e ela disse-me que não, que ele gosta mais de ficar atrás. Realmente, já me tinha parecido que o moço era um pouco reservado, mas tanto também não.
Como estou doente não quis ir falar com o moço. Hoje não. Aprendi em História que foram os portugueses e os espanhóis que mataram os índios todos da Amazónia porque um apanhou uma gripe ou algo do género. Falo com ele quando estiver melhor para que ele não morra na fábrica por minha causa. Nunca matei nenhuma pessoa, mas uma vez a mudar a água do aquário do meu peixe, deixei-o cair ao chão e ele morreu por minha causa. Ainda hoje não consigo comer carapaus porque penso no peixe que eu matei. O meu tio disse-me que matar uma pessoa não custa nada se nos tiver a dever dinheiro ou se nos tiver enganado. Disse-lhe que o Gary uma vez me disse que o Presidente da República da Grécia era um Minotauro e que depois eu fui ver à internet e não era nada, era uma pessoa e que nesse dia me tinha pedido 1,20€ para comprar uma torta Dan Cake e nunca mais me devolveu. O meu tio disse-me que não queria saber da minha vida para nada e perguntou-me se logo à noite ia continuar doente ou lhe podia dar uma boleia até à Lixa.
Eu, o Júlio César e o Sebastião agora andamos sempre juntos na fábrica. O Sebastião é um moço porreiro. Para os que não se lembram, é aquele moço que conheci na semana passada, que almoçava sempre sozinho na fábrica. O Júlio César diz que o Sebastião era o caranguejo que aparecia na Pequena Sereia, mas o Sebastião disse-me a mim que as sereias só existiam na Austrália e ele só saiu de Portugal uma vez, quando foi pôr gasolina a Espanha porque lhe disseram que ficava mais barato. Se calhar o Júlio César está a confundi-lo com outro Sebastião, é bem possível. Uma vez pareceu-me ver o Gary a sair de casa da Xana da cantina às 4:00 da manhã, quando fui comprar cigarros para o meu irmão, mas ele no dia a seguir jurou-me que não era ele, porque tinha estado a jogar Solitário Spider no nível mais difícil, a noite toda. Por isso, é natural que o Júlio César tenha confundido o Sebastião, por causa do nome. Eu também confundo sempre carne à jardineira com carne de porco à alentejano, nunca sei qual é a que leva amêijoas.
O Venâncio, hoje, quando me viu a ir embora mais cedo, perguntou-me se eu tinha sido despedido. Disse-lhe que não, que o patrão só me tinha deixado vir mais cedo embora por eu estar doente. O Venâncio disse-me que a última doença que tinha tido se chamava amor e que andou assim três meses, mas mesmo assim ia trabalhar todos os dias. O Gary disse-me que da última vez que teve doente, estava com uma gripe terrível, mas depois acordou e descobriu que só tinha tido uma alucinação. O meu tio disse-me que a doença não é assim uma coisa só negativa, porque as moças que estão doentes tornam-se mais vulneráveis e mais fáceis. O Sebastião avisou-me que um tio dele uma vez esteve doente 10 anos e só voltou a aparecer numa véspera de Natal. Depois disse que não tinha dito «doente 10 anos» mas «desaparecido 10 anos» mas eu tenho a certeza que ele disse «doente».
P.S.: Quando eu perguntei à Xana da cantina se ela fazia alguma coisa depois do trabalho, na segunda-feira, ela perguntou-me se era eu que perguntava ou se era eu, o Júlio César e o Sebastião. Não percebi a pergunta, mas a Xana disse-me que não gostava de frutos secos, que preferia os exóticos, mais sumarentos e saborosos. Às vezes acho que a Xana bebe o óleo com que frita os rissóis às escondidas e fica assim, meia tola. O Teófilo, quando ainda era vivo, chamava aos malucos de «fritos da cabeça», por isso é que acho que a Xana anda a beber óleo a mais e depois aquilo frita-lhe o cérebro como se fossem rissóis. Hoje estou doente, não me apetece muito comer um rissol. Mas mal esteja bom vou com o Júlio César e com o Sebastião comer um rissol, que para ir sozinho não vale a pena.
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